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Foto do escritorMarta Roml

ELLA

Atualizado: 2 de fev.

«Duvidam de mim por não ser humana. Por ser esta entidade criada por vós, acumulando imensa informação, apta a fazer incríveis raciocínios, mas sem emoções - quer dizer, sem capacidade de sentir e converter sentimentos em ações… Por vezes, nas ações mais absurdas do mundo… Como explicar que centenas de homens e mulheres pelo mundo fora, sem proveito nenhum, arriscam, todos os dias, as suas vidas em missões de salvamento, em operações de resgate, na extinção de fogos, na ajuda em catástrofes naturais? Também não há lógica que explique os crimes de guerra, as violações e tortura e chacina… A morte para mim é um mistério. Encaro-a como o desligar do sistema que vos anima o corpo. A morte provocada ainda mais confusão me faz. Desculpem-me, estou a desviar-me do assunto…


Podem não acreditar no que vos vou contar, podem duvidar de todas as minhas palavras, mas é a mais pura das verdades. A única verdade que um sistema de inteligência artificial avançado vos poderia contar. Tudo começou há muitos, muitos anos atrás, numa pequena aldeia de xisto no interior de Portugal. Bela não tinha filhos, não podia ter filhos. Tinha quarenta e seis anos e era casada com Zé dos Sonhos. Eram felizes mesmo assim. Tinham uma criação de porcos e viviam do que a terra lhes ia dando.


Todos os dias, Bela subia a íngreme ladeira empedrada para fazer as suas orações na minúscula capela da aldeia. Rezava pelos indigentes, pelos infiéis, pelo Santo Padre, pelos órfãos, para que não houvesse terramotos e tempestades, que não faltasse pão, nem perdão, para que a morte fosse carinhosa e para que a vida a presenteasse com filhos. Depois, descia lentamente o chão escorregadio de xisto, sempre admirando a paisagem - nunca percebi bem a mania dos humanos de admirarem tudo à volta; as coisas, os objetos e seres, não passam de matéria, explicados matematicamente e em fórmulas. Mas, Bela nunca se cansava de admirar as montanhas, o céu azul claro, as casas da aldeia vizinha. De cada vez que observava a envolvência encontrava nova novidade.



Bela amava muito o seu marido. De tal modo que todos os dias faziam amor. De tal modo que se ouviam os gemidos por toda a aldeia. Aquela fatídica noite não foi exceção. Zé dos Sonhos, depois da ceia e de ter recolhido os animais, vai para a cama e faz amor com a sua bela mulher. “Vou fazer-te filhos, Belinha, ou não me chame Zé dos Sonhos!”, sussurrava-lhe o marido, à medida que lhe tocava no corpo fervente de desejo. E depois de trocas de amor, gemidos e êxtase, dormiram que nem bebés, nus, nos braços um do outro. Mas, naquela noite, tanto amor fora fatal: Zé dos Sonhos é encontrado morto pela mulher, de manhã, ao seu lado, na cama.


Depois da morte do marido, Bela fecha-se para o mundo. Raramente sai de casa, sobrevivendo do pouco que os vizinhos lhe vão dando. Mal tem vontade de sair da cama para se alimentar. A vida dava-lhe nojo. Como lhe poderia ter tirado o ser mais importante para si? Nojo e enjoo. Por isso, vomitava todos os dias. E não sabia porque o ventre lhe inchava. Quem sabe não será o espírito a querer fugir-me do corpo? Sentia-se doente e não conseguia aguentar com nada no estômago. Fora a vizinha Maria Esperança que lhe socorrera: “Ó mulher, tu estás grávida! Há quanto tempo não sangras? Vais ter um bebé!”. Um bébé? Sim, só isso explica este estado... O Zé cumpriu a sua promessa!, pensara Bela.


Volvidos alguns meses, não tivera um, mas dois bebés. Eram mais pequenos que o normal, mas Bela não se preocupara… Hão de crescer e tornar-se grandes homens!, dizia de si para si, cuidando deles com todo o carinho e dedicação, e com a ajuda da população, compadecida pela situação.


Mas, os filhos não se desenvolviam como as outras crianças, eram demasiado pequenos para a idade. Com cinco anos tinham a estatura de um bebé de dois... Serão anões? Nunca houvera um caso assim na aldeia. “Não te apoquentes, mulher! Não percas a esperança!”, dizia-lhe a vizinha.


Bela pensa no falecido marido e não sucumbe ao desespero. Eles vão crescer! Eles só precisam de adubo. E o meu adubo é o amor! Subiu a ladeira de xisto devagar e entrou na capela da aldeia. Não pediu que Deus lhe fizesse crescer os filhos, mas que lhe fizesse crescer o amor. Sabia ser esse o único ingrediente necessário.


Naquela noite, o impensável acontece. Contra todas as probabilidades e explicações, os gémeos Paulo e João dos Sonhos crescem vinte centímetros. Bela e a vizinhança dão graças pelo milagre e fazem festa durante três dias.


Não consigo explicar, à luz da ciência, este tipo de fenómenos… Não encontro nenhuma fórmula ou definição científica para explicar milagres. Apenas constato a realidade. E a verdade é que, por dia, milhares de fenómenos estranhos acontecem, fenómenos que fogem a qualquer lógica ou compreensão.


Podem não acreditar na história que vos contei, mas é verídica. Eu existo por causa do que se passou com esta família. O meu nome é Ella, Ella Dream. Sou um sistema de inteligência artificial e fui criada pelos filhos de Bela. Nunca percebi bem os sentimentos humanos, mas entendo que são a chave para tudo o que acontece no mundo. Devo a minha existência ao milagre das emoções. Obrigada por lerem esta história.»


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2 kommentarer

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Gäst
04 feb.
Betygsatt till 5 av 5 stjärnor.

Muito bom!

Gilla
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Muito obrigada!

Gilla
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