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Foto do escritorMarta Roml

ONZE

Era curioso como tudo lhe parecia fugir do controlo. A ele que tinha todos os livros que lera inventariados. A ele que tinha as camisolas separadas por cores, os plásticos no frigorífico etiquetados, os sapatos eximiamente limpos e engraxados, todos os seus compromissos agendados e metodicamente planeados. Olhava pela janela da sala de espera do consultório e via um gato preto espreguiçando-se num vão de escada. Seria isso um sinal? Estava tudo errado na sua vida: a profissão que escolhera por acaso e sem vocação; a companheira que já não tinha; a terra que o oprimia cada vez mais. Foi parar a Sintra porque fora lá colocado enquanto professor. Antigamente costumava perder-se nas ruas cheias de passado. Mas, ultimamente não. Andava sempre com pressa, olhando para trás, sentindo-se vigiado. Sim, poderia ser reconhecido por um dos seus alunos. Pior, podia encontrar algum dos pais e logo aí ser desmascarado pela fraude que era. Nunca quisera ser professor, não tinha paciência para aturar os filhos dos outros. E os alunos farejavam o medo à distância. São como cães, pensava. Só que fazem estragos maiores na mente dos que não foram talhados para o ofício.


Afonso estava de baixa desde que se descontrolara no refeitório da escola. Atirara com um tabuleiro de comida a um dos alunos. O caso foi arquivado, mas fora-lhe sugerido que até ao Natal se mantivesse longe da escola. Sugeriram-lhe também que procurasse ajuda psiquiátrica. Estava prestes a entrar no consultório, estava prestes a assumir que tinha um problema. Não, não tinha, não podia ter. Todos aqueles números e coincidências não tinham qualquer importância. Entrara no prédio do consultório às onze e onze. O edifício era o número onze e hoje eram onze do onze. Não, todas aqueles sincronismos não tinham importância. Que disparate, não podiam ser um sinal dos céus.


De manhã, acordara inquieto. Parecia que não tinha dormido nada de tanto que sonhara. Ouvira os pássaros na cozinha ou seria alucinação? Já nada sabia. Os pássaros de Hitchcock invadindo-lhe a mente perturbada? Seriam tudo saudades? Onze meses, há onze meses que não via Elsa. Seria também isso um sinal? Onze meses, às onze do onze, no número onze, às onze e onze.


O médico estava atrasado. Afonso batia o pé e sentia-se a desmoronar. Via um casal do prédio em frente, beijando-se à janela. Um beijo prolongado, sôfrego, mas terno. Como se se estivessem a despedir. Como se adivinhassem que aquele momento poderia ser o último. Sentia saudades de Elsa, e era só. Não iria confiar as suas mais secretas deambulações mentais a um completo desconhecido. Iria levantar-se e sair; descer as escadas do prédio onze, na Rua das Padarias, e enganar o destino.



Percorre, então, essa rua estreita, alinhada com pequenas lojas de artesanato, cafés e casas tradicionais. Ao virar à esquerda, passa pela antiga Igreja de São Martinho, com a sua fachada branca e detalhes em azul. As sinuosas ruas levam-no a descer até à Praça da República. É um frenesim de atividade, com turistas e locais a passear pelas lojas de souvenirs. Detesta os turistas. Detesta como invadem as vilas e cidades de Portugal, destruindo tudo o que de precioso e genuíno existe. Se pudesse disparava sobre todos! Já não sabe o que pensar, os pensamentos são cavalos à solta na sua mente desgovernada. E sempre os pássaros voando no céu. Vai chover. Talvez não. Sim, vai trovejar.


À medida que avança pela Rua das Fontaínhas, o som dos sinos da igreja ecoa ao longe. Vira à direita na Rua da Ferraria e sente o aroma da comida dos restaurantes. Os pássaros não o largam, sempre a sobrevoar o céu cinzento. Lembra-se de Elsa e de como, ao contrário dele, adora pássaros. Subindo a rua, começa a avistar as torres imponentes do Palácio da Regaleira. Continua a andar depressa, certificando-se sempre de que não é seguido. Vira à esquerda na estrada que serpenteia a encosta da colina.


Ao passar pelo portão de entrada da quinta, observa meticulosamente a arquitetura do espaço, procurando métricas e sentidos ocultos nos desenhos das janelas em arco, nas escadarias majestosas e gárgulas misteriosas. Já é presença habitual, costuma frequentar a quinta todas as semanas, é o seu refúgio. Todavia, sente-se sempre rendido pelo ambiente denso, como se fora a primeira vez que lá entrara. E os pássaros que não o largam? Segue para o poço iniciático - é para lá que terminam as visitas à quinta. Prepara-se para descer os patamares do inferno dantesco. Prepara-se para secretamente deitar-se na rosa dos ventos, marcada no fundo do poço. Onze pássaros azucrinando-lhe o juízo. Que inferno! O telemóvel toca. Vê no écran o nome de Elsa e atende nervoso o telefone.


Elsa apresenta a voz estranha, arrastando as sílabas. Depois da conversa inicial, diz que tem saudades de Afonso e que se quer encontrar com ele. Durante o telefonema, Afonso permanece quase mudo, sem saber como reagir. Trocando palavras tímidas, combinam encontrar-se à tarde, no Café da Saudade.


Incrédulo, deita-se no chão, de cara colada à rosa dos ventos. Só pode ser um sinal, só pode ser um sinal. Ao fundo, ouve o barulho de pássaros rondando o poço. De perto, ouve o seu coração cada vez mais forte, querendo novamente acreditar.


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1 Comment

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Guest
Aug 22
Rated 5 out of 5 stars.

Texto muito interessante! Fiquei presa à história até ao fim. Parabéns!!!

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