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Foto do escritorMarta Roml

A MENTIRA

Atualizado: 13 de ago. de 2023

Ao som de Strauss, erguia os braços e chorava de emoção, trauteando a melodia. Jurava que se tivesse vivido noutra vida teria sido ele a compô-la. Depois balançava o corpo e dançava. Teria querido ser bailarino em criança. O destino reservara-lhe outro fim – ser operador numa caixa de hipermercado. Mas em casa vingava-se: dançava até não aguentar mais, arfando e esticando o corpo até ao limite das suas forças. Todos os dias mentia para si próprio, imaginava-se figura central num famoso bailado de Paris.


Naquela sala escura, às onze e meia da noite, com a música aos altos berros, em cima do sofá sujo de batatas fritas, Vasco imaginava-se no palco, o público aplaudindo ao rubro e ele agradecendo comovido. Em miúdo tivera aulas de ballet, mas a mãe não pôde sustentar os seus estudos e mal fez os dezoito anos teve que começar a trabalhar.


Adormecia todas as noites no sofá, extenuado de tanto dançar, de tanto sonhar com o impossível. Mentia para si próprio. O seu nome já não era Vasco, nem sequer tinha pénis. O seu nome era Vanessa e por isso jejuava. Magra, muito magra. Fazendo pliés, arabesques e muitas piruetas. Na mesma sala em que viu sua mãe prostituir-se centenas de vezes. Naquele mesmo sofá castanho, sujo dos vestígios da droga com que se injetava. Não, não era Vasco, o menino perdido numa casa a cheirar a haxixe e corpos suados, o menino que encontrou a mãe morta no chão da cozinha, com uma seringa espetada na virilha.


De manhã, voltava à rotina de sempre: tomar um banho rápido e quente para lhe desentorpecer o corpo, vestir a farda, engolir um iogurte magro e apanhar o autocarro. Vasco, sentindo-se Vanessa, mascarava-se todos os dias, disfarçando trejeitos femininos, inibindo-se o mais que podia. Falava pouco, mas era educado. Trabalhava com afinco e por isso era o funcionário ideal que tudo faz sem nada questionar. Sabia que quanto menos perguntas fizesse mais facilmente passaria desapercebido.


É sexta-feira, dia de sair à noite. Sente o seu corpo gritando por liberdade. Quer vestir-se com o vestido de lantejoulas que comprou em segunda mão, colocar o peito e ancas postiços, aplicar pestanas e unhas, maquilhar-se de forma exuberante e calçar os maiores sapatos de salto alto que tem. O tempo demora a passar. Cliente após cliente, sempre as mesmas frases. Ao almoço não fala com praticamente ninguém, contenta-se em alimentar o seu corpo esquelético com um prato de sopa e uma peça de fruta.



Já é noite. Agora pode ser Vanessa, a incansável bailarina. Sente-se mulher - é uma mulher, à exceção do peito liso e do sexo encolhido na cinta apertada. Desfila pelas ruas do bairro com a máxima elegância, apanhando um táxi para o bar habitual. Lá pode ser quem é, sem tabus ou receios. Entra e encontra Rafaela, uma sua amiga também transsexual. Esta diz-lhe: “Então, amiga? Andas desaparecida… Como estás, puta…?”. Riem-se de forma cúmplice e invadem a pista de dança sem pudor, abraçando e beijando na boca os amigos de farra. Vanessa, depois de beber uns quantos shots, senta-se ao balcão mirando os frequentadores do bar. Procura por Elis, por Ricardo, o amante travesti, o homem que é bancário de dia e cantor à noite. Nunca gostara tanto de alguém assim. Com ele sonhava partilhar casa, viajar, quiçá casar.


As luzes do palco iluminam-se e Elis entra no pequeno palco daquele bar. O seu corpo masculino movimenta-se ao som de “Como os nossos pais” de Elis Regina. De microfone na mão, ornamentado de plumas e com o corpo descoberto, interpreta um perfeito playback. O público vibra com a interpretação, aplaudindo sempre. Elis é conhecida naquele bar há mais de dez anos pelas atuações marcantes desta diva da música brasileira. Vanessa sabe que um dia terá coragem para subir àquele palco. Imagina-se a dançar salsa e rumba, os seus estilos preferidos depois do ballet, claro.

Após a atuação do namorado, Vanessa apressa-se a ir ter com ele aos bastidores. Os dois comemoram o momento com um beijo repleto de desejo. “Queres vir a minha casa, amor? Vamos no meu carro, Vanessa…” Os dois amantes saem pelas traseiras. Param à porta para antes fumar um cigarro. Estão felizes juntos e sabem que o seu amor é forte. Todavia, Vanessa tem um mau pressentimento: “Despacha-te com esse cigarro! Temos que sair daqui...”. Elis, retirando as pestanas, sossega Vanessa: “Calma, amor… Para de viver com esse pânico!!! Tens medo de quê? Que nos apanhem e que nos matem? Liberta-te, mulher! Assim não vives… Vá, dá-me um beijo e vamos para minha casa…”.


Vanessa e Elis entram no carro e vão-se embora. As luzes do beco tremem. Dois travestis saem e permanecem à porta, enquanto um grupo de jovens se aproxima.


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