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Foto do escritorMarta Roml

CONFIAR NA VIDA

Atualizado: 24 de abr. de 2023

Choro porque é a única coisa que sei fazer bem. Nada mais deu certo na minha vida. Nenhum dos meus sonhos de criança se concretizou e a minha vida tornou-se num somatório de enganos. Traí todos os que depositaram alguma expectativa em mim. Mas, sobretudo, trai-me a mim própria. O que dizer do que aconteceu? Apenas fiquei parada, como sempre, sem saber como reagir, em pânico e pronta a desfalecer sobre a calçada quente de agosto. Soube que estava destinada à tragédia quando os vi a rondarem o meu carro. Naquele momento percebi que a minha vida nunca mais seria como outrora. Passaria a ter medo de tudo, a desconfiar até da própria sombra. Passaria a viver com uma espada sobre a minha cabeça, respirando morte, transpirando agonia.


Quando a vi, os seus olhos esbugalhados, cravejados de medo e terror, percebi que nada daquilo estava certo. O corpo frágil e desesperado, encostado naquele carro sujo, fizeram-me mudar de atitude. Ela era uma rapariga bonita e jovem, o seu corpo bem desenhado despontava desejo e sedução. Mas, na verdade, não lhe queríamos fazer mal… Nunca quisemos tocar-lhe. O problema foram aqueles olhos grandes, ficou especada, parada a olhar para nós. Dissemos-lhe que não gritasse, que não lhe íamos fazer nada. Começou a tremer, escorriam-lhe lágrimas na pálida pele de porcelana.


E choro. Choro de manhã à noite. Os vizinhos já devem estar fartos, mas não consigo controlar. Revivo cada momento daquele encontro. Na verdade, o que mais me aterrorizou não foi o que me fizeram, porque não me chegaram a levar nada, nem me chegaram a tocar, mas o que provaram ser a minha existência: um ato de total cobardia. Não vivo, simplesmente sobrevivo. Sou incapaz de tomar qualquer tipo de posição numa situação banal da vida. Incapaz de me defender, de gritar, até de fugir. Parada, completamente estática. Ao início parecia que me queriam assaltar, rodearam-me, encurralando-me entre o meu carro e a parede de um prédio, tiraram-me a mala, insinuaram-se a mim…



Coitada. Respirava de forma ofegante. Tremendo, abriu a boca devagar, balbuciando uma frase desconexa. Não percebi o que queria dizer, talvez rezasse, não sei. Fiquei hipnotizado com aqueles olhos. Nunca lhe poderia fazer mal, não me perdoaria. Fazer-lhe mal representaria fazer mal a uma criatura completamente indefesa e isso nunca fez parte dos meus planos. Sim, já fiz assaltos. Sim, já me meti várias vezes em brigas. Já assediei mulheres e não sei se já matei. Dei uns tiros numa perigosa fuga, há uns anos atrás. Agora, existem coisas que não suporto e uma delas é fazer mal a crianças… E para mim ela era como uma criança, de tão angelical que se nos afigurava.


Quase não consigo sair de casa, quase não consigo andar de carro, andar em transportes públicos, ir ao banco, a restaurantes, a praças cheias de gente, farmácias, cinemas e hipermercados. Começo logo a fabricar cenários violentos. Imagino-me num assalto como nos filmes, com armas de fogo e grandes chacinas. O pânico constante, as palpitações descompassadas, a hiperventilação, o cheiro a morte, a urgência em desaparecer e refugiar-me no meu quarto, tornaram a minha vida num verdadeiro inferno. Arranjo todas as desculpas para não sair. Até passei a trabalhar em casa e encomendo tudo online. A pandemia ajudou, quer dizer, as pessoas não estranham, acham normal que raramente me vejam. Quando me encontram nem reparam no meu olhar aterrorizado e pouco saudável, talvez porque me tenha tornado um fantasma nas suas vidas.


No outro dia vi-a, mas estava diferente, mais magra, mais pálida, mais frágil. Estava numa esplanada a beber uma cerveja sozinho, a pensar em como iria arranjar dinheiro para a renda do próximo mês. Ela andava na rua muito depressa, parecia que ia a fugir de algo. Foi quando a vi estatelar-se no chão mesmo à frente da minha mesa. Levantei-me para a ajudar. Toquei-lhe na pele suave e fria. Ela nada disse. Levantou-se e continuou a caminhada. Desta vez, fiquei eu paralisado, não sei durante quanto tempo. Estava certo que não me reconhecera. E deixara a sua mala no chão.


Depois de cair, senti o coração a bater forte. Foi aquele toque, um toque que a minha alma reconhecia. Depois, muito mais tarde, já eu ia no final da rua, ouvi-o chamar: “Menina! Desculpe, deixou cair a sua mala…”. Aproximou-se de mim lentamente, parecia que queria prolongar aquele momento. Os meus olhos buscavam sossego naquele perfil rude e moreno. Percebi, naquele instante, que podia confiar na vida.


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