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Foto do escritorMarta Roml

FLORES

Atualizado: 24 de set.

Pelas unhas se vê a cor da alma, pensava ela observando-o a gesticular. Ele discursava perante a audiência, como que num momento autofágico, saltando de tema em tema, não chegando a terminar as frases. Estava a ficar velho, e deixava de fora as garras sujas da senilidade. A plateia via-se desligada do seu discurso, distraindo-se sob qualquer pretexto. Conceição frequentava as suas aulas desde que perdera a mãe há cerca de seis meses. Perdera-a gradualmente, cada dia vendo a infância crescendo: no gesto mais mirrado, nos pés tateando o solo, no corpo trocando as voltas ao tempo, na respiração mais pesada. A mãe fumara até morrer, dizia que se tivesse que partir, partiria com a revolta na boca contra o patriarcado. O primeiro cigarro fumado às escondidas dos pais, nas traseiras do salão paroquial, abrira-lhe os pulmões da liberdade. E pela liberdade era capaz de chocar a alma mais puritana. Aqueles dedos comidos pelo fumo lembravam-lhe os dedos da mãe. Mas apenas a tonalidade amarela na pele envelhecida, nada mais. Todos os dias o odiava um pouco mais. A forma como gesticulava, o discurso bolorento, a língua gretada que espreitava por entre gafanhotos de saliva. Morrera há seis meses, seis meses e quatro dias. Quem a ouvisse falar, diria que nada naquele fulano a perturbava. Mas por dentro fervilhava de raiva. Um sortilégio que prometia vingança refinada.


O que mais a irritava era ter que aturar as descrições sobre os países que visitara, as comidas que degustara, as pessoas que conhecera. Repetia os assuntos e já nada do que dizia importava, nem para si próprio, nem para os alunos. A camisa cheia de nódoas e quase sempre os mesmos sapatos. Se calhar não tinha outros. Ou os joanetes já estavam acamados àqueles. Não interessava, nada daquilo interessava. Conceição ia abandonar o curso de Química um dia destes. Era só ganhar coragem e conseguir dizer tudo ao padrasto. Num dia calmo, chegar a casa, lavar a loiça quase sempre empilhada até à refeição seguinte, e dizer o que se acumulou nos ossos: quero ser feliz.


Soubera de tudo há pouco. Somos protões e neutrões. E eletrões também. E eu? Mais nojo, cada vez mais nojo. As unhas saindo dos dedos amarelos. Ouvindo sobre Taj Mahal e como por amor fora mandado construir. Ouvindo falar em como até aranhas grelhadas já provara. Tudo lhe dava nojo. Conceição. São para os amigos. Afinal nada daquilo importava. Cada vez que o ouvia, continha uma vontade imensa de o interromper e gritar o inominável. Menos, espera um pouco, até ele se enterrar completamente.



Sempre que queria descrever alguém chico-esperto referia-se a “o artista” isto, o “artista” aquilo. Nada a irritava mais. Porquê? Como se a arte fosse uma espécie de atividade inferior que os seres menos dotados praticam com alguma habilidade e enganando os outros. Não percebiam as pessoas que sem arte não somos nada. A arte dá significado à realidade e dá valor à experiência. A vida sem arte seria quadro sem moldura ou qualquer expressão. Frustrado. Provavelmente, nem uma flor conseguia desenhar. Nem uma flor. Provavelmente, nem uma pauta de música distinguia de um qualquer código de barras. Nojo.


Novamente as moléculas. E mais viagens. Desta vez, à Madeira: “Nunca vi tanta flor junta! É outro país…”. Rindo-se. Conceição cada vez mais irritada, quase avermelhada de tanta raiva conter. Porque é que o destino lhe preparara isto? Conhecer o seu progenitor desta forma? Ao menos deixara-lhe um bonito sobrenome: Flores. Talvez por isso passasse as suas aulas desenhando flores. Enchia as páginas quadriculadas de rosas, as preferidas de sua mãe. Nunca mais arranjava coragem de o confrontar. O que dizer afinal? Olá, professor! O meu nome é Conceição Flores. Sou sua aluna e… sua filha. Teve um caso com a minha mãe há muitos anos atrás e depois abandonou-nos às duas. Não! Melhor preparar-lhe uma vingança. Seduzi-lo, ludibriá-lo e depois humilhá-lo, acusá-lo de assédio ou violação. Não, todos perceberiam que sou sua filha. Não sei. Ele é casado, por isso é melhor chantageá-lo com a verdade. Não sei. Não sei nada.


Passava as aulas desenhando e arquitetando formas de se vingar. Até já tinha equacionado matá-lo. Drogá-lo e depois estrangulá-lo lentamente. Como o tabaco o tinha feito à mãe. Cada cigarro que fumara era beijo falhado e muita desilusão. Todavia, naquele dia havia algo de diferente no seu progenitor, um brilho no olhar, qualquer coisa… Estava mais alegre, mais loquaz. Fazia perguntas diretas aos alunos, sempre muito alegre e vivo. A certa altura, sentado à secretária, questiona: “Quem somos, afinal? Apenas moléculas? Quem somos? Se vocês se pudessem definir, o que diriam? Sim, aquela menina… Sim, tu… Passas as minha aulas a desenhar…. O que é isso que desenhas?”. Conceição ergue-se e muito nervosa, não sabendo o que dizer e, ao mesmo tempo, querendo gritar, diz: “São Flores, senhor. O meu nome é São Flores. E o que desenho são rosas. Tenho o mesmo apelido que o professor, mas não sou sua filha…”.


Dinis Flores reconhece aqueles olhos, o nariz afinado, a boca carnuda. Reconhece também a pinta escura na testa. Filha da artista Isabel Águas. Olha para a audiência e sorrindo, diz: “O que uma rainha não esconde por amor?”. Os alunos riem-se e instala-se a confusão. Conceição calma e decidida afirma em voz alta: “Obrigada por me ajudar a perceber quem sou. E decididamente não sou sua filha.” Arrumando os livros, descendo as escadas do auditório e feliz, abandona a universidade, nunca lá mais voltando.


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