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Foto do escritorMarta Roml

FOME DE VIVER

Aquela planície lembrava-lhe tempos idos. Balançava o corpo como quem dança. E dizia para si própria: apesar de tudo, foram os anos mais felizes da minha vida. Nunca mais voltaria a ter vinte anos, nunca mais teria aquele corpo esguio e musculado, sedento de viver histórias e conhecer pessoas e lugares. Naquele tempo não tinha medo de nada, percorria aqueles montes descalça, orientando o gado e indo buscar água à ribeira. Muita fome passou, comendo côdeas de pão rijo, rapando panelas de sopa e açorda, dizendo para si própria que quando fosse grande seria rica. Por isso, emigrara. Por isso, abandonara o seu país, a sua terra, há mais de trinta anos. Agora, Luísa tinha cinquenta e cinco anos. Já era avó, os ossos já falavam quando o tempo mudava. No peito carregava muitas batalhas travadas solitariamente. Não se casara, dizia que os homens eram estorvo para a sua vida. Mas, por ironia do destino tivera um filho homem e dois netos rapazes. Costumava dizer que Deus gozava com a humanidade, era um Mestre do Ilusionismo, iludia a humanidade com falsas promessas de conforto e beleza e no final fazia xeque-mate com sofrimento e morte. Luísa olhava para aquela planície recordando-se de uma infância e juventude duras, mas felizes, em que o peso da palavra valia ouro. Os contratos eram apalavrados e isso era assinatura de alma. Olhava para o monte da Ti Hortência e do Ti Manel das Couves e lembrava-se dos banhos de alguidar para aguentar o calor, do leite creme queimado com ferro, do leite acabado de ordenhar para matar a fome maldita. Lembrava-se de, ainda miúda, entrar na taberna do Quim do Pereiro e ouvir os cantares de um grupo de homens bebendo e espantando as agruras da vida. Não, Luísa não tivera uma vida fácil. Em França trabalhara como empregada de limpezas. Lá tivera uma vida aparentemente melhor. Pelo menos, não passava fome, pensava. O pior das pessoas vem com a fome. Por fome faz-se tudo, coisas que não lembra o diabo.


Aquela planície lembrava-lhe o melhor e o pior da sua vida, mas mesmo assim queria poder regressar àqueles tempos, queria voltar ao dia em que a vira pela última vez. Sua mãe abalara um dia sem nada dizer, sem se despedir. Sendo Luísa a mais velha, ficara ela responsável pelo trabalho da casa e pela educação dos irmãos. Nunca chorou, sabia que as lágrimas eram poucas para expressar tudo o que sentia. A partir desse dia o pai nunca mais foi o mesmo. Passava os dias na taberna a beber. Certo dia foram-no encontrar morto, preso num sobreiro do monte do Abel Colares. O corpo hirto, preso pelo pescoço por uma corda meticulosamente preparada. Luísa tivera que ver o pai, afinal foi ela que o preparou para o velório. O que mais a chocou foram os olhos arregalados, parecia que estavam assustados por encarar a morte. Nunca chorou pela trágica perda do pai. Todas as lágrimas eram poucas, poucas e desnecessárias. A água aqui é escassa, pensava ela. Chorar para quê?


Carregava estas memórias ao lado de muitas outras, todas misturadas sem ordem aparente: bailaricos de verão; a morte do Avô Joaquim; beijos roubados nas traseiras da igreja; dormir com o estômago a doer de fome; os rebuçados da Avó Clotilde; os serões a cantar; perdida no monte sendo perseguida pelo filho mais velho dos donos da Quinta dos Francos; os banhos frescos de domingo na das Dores; os dias santos passados em comunidade; o sangue correndo nas veias e só ar nas algibeiras…


No peito trazia todas aquelas memórias, e apesar de muitas serem felizes, prometera para si própria nunca mais passar por tudo o que vivera. A muito custo conquistou algum conforto na vida. Tinha uma casita na periferia de Paris; um carro em segunda mão, mas com bom motor; uma família que nunca abandonaria; e muita vontade de trabalhar. Apesar de tudo, Luísa gostava da vida que tinha, gostava de si, do seu filho e dos seus netos. Tornara-se uma mulher realizada. Todas as recordações mais pesadas eram fonte de força para continuar a viver, sabia que nunca poderia ser o que é hoje se não fossem aquelas vivências.


Agora estava ali: de fronte à planície que a vira nascer, observando os campos estéreis que percorrera em criança. E à semelhança de outros tempos, Luísa descalça-se. Sente o calor da terra. A terra que se tornara sua mãe. Curva-se e beija o solo, sentindo a textura agreste nos lábios. Luísa está aparentemente emocionada, mas não verte uma lágrima. Vertera todas quando sua mãe lhe dissera que Luísa e os irmãos eram uma maldição de Deus. Luísa, permanece ali algum tempo tentando apaziguar os olhos do passado. Depois, entra no carro e parte deixando um rasto de poeira atrás de si.


Para sempre guardaria aquelas planícies sem fim, o cheiro do pão acabado de fazer, a terra seca e sedenta de alimento, o calor do gado e das gentes, as peles marcadas pelo labor e sofrimento, tanta terra, tanta terra, tanto trabalho e suor e uma pátria que clama e canta e nunca sai do coração, para sempre habita em nossos corpos cansados de sobreviver.


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4 comentarios

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Invitado
01 oct 2023
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Adorei. Parabéns!

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Contestando a

Obrigada!!! 😀

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Invitado
01 oct 2023

Gosto.As Origens têm sempre muita força e a Natureza muito poder atractivo.

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Marta Roml
Marta Roml
01 oct 2023
Contestando a

Muito obrigada pelo comentário!

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