Seth admirava a paisagem com uma espécie de saudade, parecia que sempre se estava a despedir, cada vez que tocava o seu olhar naquela construção. Não sabia muito do seu passado: filho de escravos, vendido também para trabalhar em troco apenas de alimento. Era muito jovem, mas já conhecia palavras que deveriam ser guardadas até muito tarde – dor, ferida, sangue, morte. Sonhava pouco, apenas os sonhos de dormir, os outros calcava-os para ninguém os apanhar. O sol estava a esconder-se, aquele deus que o obrigavam a venerar, a quem tudo deviam e para quem tudo faziam. No dia em que marcaram o seu corpo, Seth amaldiçoou Rá por dentro. Uma dor excruciante revolveu-lhe as entranhas ao sentir o ferro quente penetrar na pele. Sempre soube ser bom escravo, não questionar nada, obedecer e calar. Mas o espírito não o podiam escravizar, pensava. Fora isso que sua mãe lhe ensinara. Às portas da morte, dissera-lhe: não deixes que te marquem por dentro, sê livre. Percorrendo a íngreme face da pirâmide, tinha desejos pequenos: um copo de água para sarar a boca seca, um pedaço de pão para encolher a fome. Nunca vira Quefren de perto, apenas a esfinge que tinha sido construída em seu louvor. Tinha vinte metros, impressionava ao olhar. Nunca estivera tão perto da realeza. Observava a cabeça real emergindo do corpo de leão. Queria ser faraó apenas por um dia, provar os manjares, dormir com as concubinas, dar ordens e ser venerado. Todavia, era um quase objeto, apenas servindo para transportar pedra, quebrar pedra, esculpir pedra. Subia a íngreme face da pirâmide, acumulando raiva, aquela que lhe fazia ser bom escravo.
Quefren observava o filho Miquerinos e a mulher Camerernebeti brincando no pátio. Observava também, ao longe, a miríade de escravos trabalhado na pirâmide. Ontem tinha ordenado que se arranjassem mais escravos para acelerar a construção do seu túmulo. Sentia a morte a aproximar-se, o seu cheiro cercava-o. Não iria durar muito mais. Rá fora bondoso consigo, dera-lhe oito filhos e um enorme património. Não lhe dera, porém, dinastia infinita. Claro que iria acordar depois da morte e tudo estava a ser preparado para esse fim. Mas nessa altura, já outro faraó reinaria… Como estaria o Egito quando acordasse? Como seria a sua vida? Seria também venerado? Eram essas as questões que atormentavam o seu sono. Todos os dias chamava vários sacerdotes para o sossegarem. Sentia-se preso nos pensamentos, esmagado nas suas responsabilidades de rei. Queria, por um dia apenas, ser como um dos trabalhadores da sua pirâmide: executar uma tarefa fácil, não ter grandes questões para responder, não sentir o peso de todo um reino.
Por todas essas razões, Quefren vai passar a noite com Meresanque III, sua segunda esposa. Recorre sempre à sua companhia quando se sente mais preocupado. Com ela tem quatro filhos, todavia é Miquerinos o seu sucessor. Meresanque III entrega-se a Quefren com toda a paixão, sabe que assim o acalma. Sabe também que está a prestar um favor ao reino e a toda a sua descendência. Não o ama, nunca o amou. Porém, é seu dever entregar o corpo a sua alteza real. Todavia, hoje nada acalma o faraó. Acorda sobressaltado. Sonhou com um povo atravessando um canal seco por entre o Nilo; com soldados egípcios sendo devorados pelas águas; com o seu país afundando-se lentamente. De madrugada, chama Amon, um dos sacerdotes, intimando-o a traduzir o sonho. Amon diz-lhe que só há uma solução: por cada metro de pirâmide construído libertar um escravo, só assim o faraó terá descanso. E o meu país? E a minha descendência, inquire o faraó. Amon fica em silêncio. Em relação a isso nada vê.
Seth acorda. Ainda é cedo, mas tarde para um escravo. Bebe água e engole um pedaço de pão velho. Arruma a esteira e dirige-se ao Nilo para se banhar. De repente, vê refletido no rio uma mancha vermelha. Depois, ouve uma voz: “Tu és o nomeado. Serás o primeiro escravo livre deste reino. Formarás a tua família e cultivarás o teu alimento. Ensinarás à tua descendência o valor da liberdade. Os netos dos teus netos ajudarão o povo eleito. Tudo é efémero, tudo se esboroa. Até a base da esfinge do faraó… Apenas o Amor sobrevive. Eu sou Amor, Eu sou Vida, Eu sou Liberdade. Nada me poderá destruir. Falarei até ao final dos tempos: na criança, na flor, na água que corre, no sangue que jorra e que insiste em sempre dar vida. Seth não sabe o que fazer. O que quereria tudo aquilo dizer? Quem era aquela voz? Um espírito do mundo dos mortos? O próprio Hórus? Não sabia e ficara muito assustado. Depois de se recuperar da situação, banha-se às pressas e retoma os trabalhos na pirâmide.
De uma carruagem, Quefren observa a construção da pirâmide. O seu espírito já está mais sossegado. Sabe que terá um bom túmulo depois da morte. Ao longe, vê um rapaz muito jovem, puxando uma corda, amarrada a um conjunto de pedras. Que força impressionante, pensa. Como gostaria de ser aquele escravo, preso apenas a uma vulgar corda. Como gostaria de pensar apenas no peso de uma pedra. Entretanto, segreda qualquer coisa a um dos soldados. Este corre em direção a Seth. Segreda-lhe o recado do faraó. O escravo liberta-se da corda, deixando-se cair de joelhos. Incrédulo, Seth desmancha-se num comovido pranto. Nunca a liberdade fora tão livre.
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