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Foto do escritorMarta Roml

O REI

Atualizado: 12 de set. de 2023

Sentia-se o rei daquele bairro e gingava pelas ruas com essa certeza. O seu andar era uma dança que fazia, os cumprimentos que dava faziam parte de mais um passe de dança. Levava o seu cão solto e sem açaime, um pitbull com um focinho ameaçador. Ostentava as correntes de ouro como quem ostenta troféus de guerra. Via a vida como um jogo de xadrez, quem não estava a favor dos seus, só podia estar contra…. Era um preto rijo e forte, diziam, já tinha sobrevivido a muita merda. Tinha vindo fugido da Guiné-Bissau, e sabia-se que era um sobrevivente ao horror da guerra. Perdera os pais ainda em criança e vivera com uma tia materna. Por isso, Vítor era rijo e forte, o maior do seu bairro, o verdadeiro rei.


Tentava alimentar toda uma aura de chefe de gang, nada poderia ameaçar essa imagem de líder. Tinha seis filhos das duas mulheres que tivera. Quatro da primeira mulher e dois da atual. Trabalhara nas obras durante alguns anos, mas desistira, ganhava-se mais vendendo droga e tabaco contrabandeado. Por isso, gostava de se ver como empresário. Para além da droga e do tabaco, vendia o que conseguisse arranjar. Até vendia a mulher se fosse preciso.


A trabalhar com ele tinha mais cinco homens. Depois, tinha uma série de contactos com os quais também trabalhava. Vítor, o rei do bairro, descia pela rua principal do bairro com o seu cão, e controlava todos os movimentos das gentes. No café do costume, sentava-se no grande muro de pedra, e cumprimentava os seus amigos. Ali passavam o dia, bebendo cervejas e fumando ganzas. Tratavam de negócios e viam quem passava.



Vítor era, portanto, um espécime raro, um macho alfa, sobrevivente da guerra, com seis filhos e dono de todo um negócio bastante lucrativo. Para além disso, no bairro tinha um grupo de mulheres que se faziam a ele descaradamente. Rodeavam-no com ofertas difíceis de negar. Por isso, Vítor muitas vezes dormia fora de casa. A mulher já sabia e nem se zangava com ele, desde que ele trouxesse o guito para casa e cumprisse com as suas obrigações sexuais.


Ali, sentado naquele muro, Vítor conseguia controlar tudo. Ultimamente só não controlava os seus pensamentos. Ordens de uma qualquer voz que o mandava fazer coisas estúpidas e sem sentido: “Dá-lhe a mão…. Beija-o! Beija-o! Abraça-o!”. Beija-o? Não conseguia compreender… Vítor não podia ser gay! Afinal, ele era o rei, o dono do bairro. Aquele que tinha um séquito de mulheres atrás dele. A sua mente estava a pregar-lhe uma enorme partida. Volta e meia mais uma ordem promíscua: “Faz-te a ele, Vítor! Ele é tão bom!...”. Quando isso acontecia, Vítor tinha vontade de fugir para casa, vontade de meter-se no duche e tomar um prolongado banho quente. Esfregar o corpo e a cabeça conspurcada.


Mas, hoje acontece algo de diferente: sempre que recebe uma ordem, Vítor dá um safanão com a cabeça e pisca freneticamente os olhos. E não consegue controlar aqueles tiques…. É claro que os seus amigos percebem que alguma coisa está a acontecer com ele. Mas, Vítor, mais uma vez foge. Corre por aquelas ruas que tão bem conhece, corre a desejar um banho que o ajude a limpar aquela sujeira. Lembra-se de tudo naquele trajeto, dos seus pais mortos à sua frente, dele em criança perdido no mato, dos maus tratos dos brancos no internato já em Portugal e do abraço carinhoso de sua tia quando o foi resgatar da instituição.


Entra em casa desesperado. Sabe que a mulher está em casa, mas não lhe quer revelar o que lhe está a acontecer…. Vai diretamente para a casa-de-banho. A mulher deve estar na cozinha, pensa. Abre a porta da casa-de-banho e vê a mulher. Vê também um homem. Vê-os aos dois enrolados. Vítor apresenta uma estranha calma, já lhe passaram os tiques e já deixou de ouvir a voz que tanto o incomodava. Os dois amantes estão paralisados de medo, sem saberem o que fazer e dizer. Vítor levanta a camisa, agarra num pequeno revólver que guarda à cintura. Estendendo a arma na direção dos dois, atira a matar.


Os corpos no chão, o sangue conspurcando tudo. Vítor continua calmo, mete-se no duche e toma o seu desejado banho.

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