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Foto do escritorMarta Roml

POR ENTRE OS PINGOS DA CHUVA

E sentia-se assim tão velha. Velha e cansada. A sua vida era uma sombra do que fora e agora restava-lhe somente o álbum de fotografias. Julieta já não reconhecia aquela mulher que observava nas fotos. Era bonita e elegante, parecia aventureira, inteligente, pronta para um desafio. Agora, carregava demasiadas rugas no rosto num corpo pesado e disforme. Todos os movimentos eram lentos e o corpo muitas vezes não respondia às suas ordens. O seu pensamento viajava para um passado distante: o dia em que conhece o seu marido. Foi num dia de muita chuva. Julieta saíra à noite com uma amiga. Saíra às escondidas dos pais, claro.

Conhecera-o na pista de dança, foi paixão à primeira vista. Depressa trocaram um beijo, depressa sentiram o fogo dos seus corpos a explodir de desejo. O tempo passou depressa, passaram a encontrar-se todos os dias. Tinham planos, muitos planos. Queriam viajar juntos pelo mundo, queriam ter três filhos. Queriam casar-se na praia com amigos e família.


“Um casamento envolto em tanto drama. Poderia eu adivinhar que as nossas famílias se conheciam e não se davam?”, pensava Julieta. Grávida e obrigada a casar pelo pai austero. No copo de água discussões entre as mães dos noivos. Já não se lembrava do que discutiam. Aliás, ultimamente já não se recordava de demasiada coisa. Sentia-se a morrer, lentamente perdia todas as suas capacidades. Preferiria ter um enfarte ou um acidente e morrer rapidamente. Em vez disso, Deus estava a tirar-lhe tudo o mais lentamente possível.

Ainda não se tinha arranjado, estava de camisa de noite. Põe um casaco comprido por cima e sai de casa. Já há uma semana que não sai de casa. Chove como no dia em que conheceu o seu marido. Chove como no dia em que deu à luz o seu filho. Julieta caminha lentamente pelas ruas de Lisboa. Olha para as pessoas à sua volta e não as reconhece. Também já não reconhece as ruas que percorre. O vento forte que se começa a levantar dobra-lhe o chapéu de chuva. Agora, Julieta caminha à chuva. Já não sabe bem se está na Avenida da República, se está na Avenida da Liberdade. Mas, também não ousa perguntar a alguém, poderiam pensar que estava velha e louca.



Anoitecia, Julieta caminha empurrando o vento e a chuva. “A minha casa, preciso de chegar a minha casa. Preciso de apanhar um táxi. Se tivesse trazido o raio do telemóvel! Não sei se tenho dinheiro…”, pensava ela. Teria hoje quarenta e três anos se estivesse vivo. Em vez disso, morreu eletrocutado numa banheira por causa de uma paixoneta mal resolvida. O seu filho, o seu querido filho. O menino que a ajudara a suportar o temperamento do marido. Aquele que todos os dias lhe roubava dezenas de sorrisos e muitas gargalhadas.

À medida que se vai recordando do filho, lembra-se também do marido. Devia estar preocupado com ela. Já quase todos mortos, já ninguém para lhe azucrinar o juízo. Os sogros mortos, as cunhadas também, todos no lado de lá. “Restamos só nós os dois”, pensa.

Finalmente, Julieta avista um táxi. Entra e lá consegue dizer a morada. Está toda molhada, o corpo gelado e a espirrar. “A senhora não devia andar assim à chuva!”, diz o taxista com bom humor. “Quem anda à chuva molha-se… Nunca ouviu dizer?”, volta a retorquir. Julieta ri-se e responde: “A chuva parece perseguir a minha vida, meu senhor.” E durante vinte minutos conversam amenamente. Chegada ao destino, Julieta pede ao taxista que espere para ela ir buscar dinheiro a casa, felizmente não se esqueceu das chaves…


Sobe a casa e regressa pagando o devido ao taxista. O marido ainda não chegara. Normalmente, passava este dia na casa de um amigo de infância. Normalmente, ela passava-o sozinha, junto das cinzas do filho, na sala de estar.


Depois de trocar de roupa e de se aquecer tomando uma bebida quente, Julieta telefona para o marido. Do outro lado da linha ouve-se uma voz rouca: “Fartei-me de te telefonar e não atendeste…. Estava preocupado…”. Julieta responde: “Eu estou bem, querido! Não te preocupes, Romeu. Fui só à rua e esqueci-me do telemóvel…”.

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