top of page
Foto do escritorMarta Roml

POVOANDO A TERRA

Olhava-se ao espelho, reparando nas pequenas rugas que se acumulavam na zona dos olhos. Lídia era uma mulher de aspeto ainda jovem, todavia os olhos denunciavam a idade. Quarenta. Quarenta anos feitos há pouco. Nem mais, nem menos. Quarenta anos e tantos sonhos por cumprir… Ainda sonhava viajar pelo mundo, abrir uma empresa de roupa em segunda mão, escrever um livro de culinária, assistir a um concerto da Madonna, dançar nua à chuva, concorrer a um talent show, aprender japonês, fazer férias no Senegal, comprar um piano de cauda, adotar um casal de papagaios… Mas agora precisava de tempo para cumprir o seu mais precioso sonho – ter um filho. Estava grávida de três meses. Não encontrou homem à altura para ser o pai, de forma que optou pela inseminação artificial. Escolhera as características por catálogo. Teria que ter olhos verdes, Q.I. alto e mais de 1.75 metros de altura. O processo fora lento e doloroso: as injeções na barriga, a invasão da sua vagina com longas agulhas, a espera, a expectativa. Para Lídia o mais difícil era a solidão, ter que gerir todas as emoções sozinha, não poder contar com ninguém para partilhar os problemas. Mas, não se arrependera de nada. Iria ter o filho que sempre desejara e ninguém para lhe azucrinar o juízo, ninguém para controlar o que fazia. O filho seria só seu, de mais ninguém!


“Sai, filho da puta, sai…”, praguejava Vera. Naquela cama de madeira tinham nascido duas gerações de Roques da Silva. Naquele quarto interior, sem janelas, o passado assombrava a sua mente. Ouvia os gritos da avó paterna enquanto a parteira lhe enfiava a mão corpo adentro, ouvia a voz da mãe suplicando que o marido não lhe vendesse o filho acabado de nascer, ouvia tantas mulheres parindo sozinhas, como ela, abandonadas pelo destino. Ouvia o som da Terra. Apenas esse som a acalmava, saber que tudo era feminino - só uma mulher poderia conter tanta força e esperança. Vera, sozinha, pernas abertas e de cócoras, vociferava, abafando a voz. Preferiria que alguém a ajudasse, mas nunca poderia admitir a gravidez. Conseguira esconder tudo do marido que quase nunca lhe tocava. Era militar e quando regressava a casa vinha sempre demasiado abalado das missões. Vera Roque da Silva Lima paria sozinha na velha cama de cerejeira da família. “Sai, filho da puta, sai!!!”, gritava, sempre que se lembrava do progenitor da criança.



Vicente seria pai de qualquer maneira. Para isso doava esperma. De seis em seis meses fazia expedições a várias clínicas de inseminação artificial. Queria povoar a Terra de réplicas suas. Como ele, nasceriam altos, de olhos verdes e inteligência superior. O pai nunca poderia saber do seu projeto de reprodução. Também nunca poderia descobrir que era gay e que desejava criar uma criança. Para o pai de Vicente o homem tem que ser como um touro: aproveitar-se de toda a fêmea desprotegida, cobrir mulheres parideiras, deixando marca de propriedade. Vicente sabia perfeitamente o que o pai fazia com a empregada. Fizera-o toda a vida com um vasto rol de mulheres. O velho Fonseca abusava das coitadas que cediam com medo de perderem o emprego. No fundo, Vicente também era como o pai, ao querer espalhar seu sémen pelo mundo.


Lídia não queria saber quem era o pai. Tinha tudo planeado ao mínimo pormenor: o quarto decorado, as roupas e acessórios comprados, a creche reservada, a escola em lista de espera… Chamar-se-ia Gabriel. Seria um anjo na sua vida, portador apenas de alegrias. Já passara várias vezes por este processo, abortando várias vezes. Sentia que desta é que era. Iria cumprir o seu sonho. Quarenta anos à espera. Sete meses de gravidez. Olhando o rosto maduro ao espelho, continuando a contar as finas linhas da face, começa a sentir fortes pontadas no ventre. Um rio de água quente escorre pelas pernas. É hora!


Lembrava-se das mãos do velho Fonseca conspurcando o seu corpo. Dessas mesmas mãos que lhe entregavam dois maços de notas todos os meses. Se o marido descobrisse matava-o. Por isso, despedira-se, mal soube que estava grávida. Vera já tinha tudo pensado: depois de dar à luz, abandonaria a criança à porta da casa do patrão. Ele que resolvesse o assunto. Tanta voz que ouvia e tudo por dentro a estalar. Sentia a cabeça do bebé a descer. “Sai, filho da puta! Vai infernizar a vida do teu pai! Ele merece!!!”


Vicente abre a porta. Olha e não vê ninguém. Deve ter sido engano, pensa. Fecha a porta desconfiado. Ouve, então, um choro de bebé. De onde virá? Abre a porta e nas escadas vê um berço. Alguém abandonara ali um recém-nascido? Vicente percebe, naquele momento, que o seu destino está traçado.


41 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating
bottom of page